A decisão do juiz José Eugenio
do Amaral Souza Neto, do Foro Central Criminal da Barra Funda, de libertar o
ajudante-geral Diego Ferreira de Novais, de 27 anos, preso na terça-feira, em
flagrante, após se masturbar e ejacular em uma passageira dentro de um ônibus
na Avenida Paulista, na região central de São Paulo, dividiu opiniões no meio
jurídico.
Souza Neto decretou que
houvesse o relaxamento do flagrante por entender que não houve estupro, como a
Polícia Civil havia registrado a ocorrência, mas “importunação ofensiva ao
pudor”, que é classificada como uma contravenção penal – veja abaixo a
argumentação completa do magistrado para mandar soltar o suspeito e o que dizem
cinco juristas ouvidos por VEJA.
A íntegra da decisão do juiz
Na espécie, entendo que a
conduta pela qual o indiciado foi preso melhor se amolda à contravenção penal
do art. 61, LCP [Lei das Contravenções Penais] do que ao crime de estupro (art.
213, Código Penal). Explico. O crime de estupro tem como núcleo tipico constranger
alguém, mediante violência ou grave ameaça, a ter conjunção carnal ou a
praticar ou permitir que com ele se pratique outro ato libidinoso. Na espécie,
entendo que não houve o constrangimento, tampouco violência ou grave ameaça,
pois a vitima estava sentada em um banco do ônibus, quando foi surpreendida
pela ejaculação do indiciado. O ato praticado pelo indiciado é bastante grave,
já que se masturbou e ejaculou em um ônibus cheio, em cima de uma passageira,
que ficou, logicamente, bastante nervosa e traumatizada. Ademais, pelo exame da
folha de antecedentes do indiciado, verifica-se que tem histórico desse tipo de
comportamento, necessitando de tratamento psiquiátrico e psicológico para
evitar a reiteração de condutas como esta, que violam gravemente a dignidade
sexual das mulheres, mas que, penalmente, configuram apenas contravenção penal.
Como essa contravenção é apenas somente com multa, impossível a homologação do
flagrante. Ante o exposto, relaxo a prisão em flagrante. Expeça-se alvará de
soltura.
Gustavo Badaró, professor
associado de direito processual penal da USP
“Há uma diferença semântica. A
mulher se sente constrangida e revoltada com o que aconteceu, mas, para
caracterizar o estupro, a lei não trata do constrangimento no sentido de causar
vergonha. Ela aborda o ato de forçar indevidamente alguém a configurar o ato
libidinoso. O relaxamento do flagrante foi correto porque não houve
constrangimento prévio para conseguir o ato libidinoso. Não é possível decretar
a prisão preventiva porque a lei não permite que isso seja feito para crimes
cuja pena é inferior a quatro anos.
É preciso que a legislação
penal, no caso da tipificação, acompanhe a evolução social. Esse é um ato
extremamente grave, causa um constrangimento no sentido de revolta. Talvez seja
preciso pensar em condutas que são reais, que acontecem hoje, mas que não eram
praticadas em 1940, quando o Código Penal foi feito. A crítica feita ao juiz é
injusta. A crítica deveria ser ao legislador, que tem se omitido na hora de
tipificar a conduta. O juiz não pode criar crimes da cabeça dele ou fazer
analogias que levem o cidadão a ser punido por crimes que não existem. A
revolta social não deve ser contra o juiz, mas contra a insuficiência da
legislação brasileira.”
O juiz não pode criar crimes
da cabeça dele ou fazer analogias que levem o cidadão a ser punido por crimes
que não existem. A revolta social não deve ser contra o juiz, mas contra a
insuficiência da legislação brasileira.”
Luiza Nagib Eluf, advogada
criminal e procuradora aposentada da Justiça de São Paulo
“A discussão é de que não
houve violência. Só sendo muito despreparado para dizer que essa conduta não
teve violência. É preciso ter a clareza de que a violência se manifesta de
várias formas, não existe uma única forma de constrangimento. Alguns juristas
encaram o estupro como aquela velha modalidade em que a moça passa em uma rua
escura e é atacada por alguém armado. Você pode violentar alguém quando ejacula
no seu rosto, isso já é um constrangimento brutal.
Muito me espanta que existam
juristas que não tenham percebido o constrangimento que essa conduta
representou. Essas pessoas estão cegas. A decisão do juiz de liberar o acusado
foi um erro grosseiro. Fiquei muito espantada com a concordância do promotor,
que tem a função primordial de defender a sociedade dos bandidos e dos maníacos
sexuais. Pena por estupro é prisão preventiva. É preciso haver uma atualização
mental e conceitual dos aplicadores do direito, que erraram nesse caso.”
Muito me espanta que existam
juristas que não tenham percebido o constrangimento que essa conduta
representou. Essas pessoas estão cegas. A decisão do juiz de liberar o acusado
foi um erro grosseiro.
Rogério Cury, especialista em
direito penal e sócio do escritório Cury & Cury Advogados Associados
“Se o juiz entendeu que, em
tese, houve contravenção penal, então ela só possui pena de multa, não possui
nenhuma pena privativa de liberdade nem sequer restritiva de direito. É
inequívoco que o ato é completamente ilegal, é uma infração penal, mas não um
crime de estupro. Deveria haver uma revisão na legislação para que esse tipo de
conduta seja punida com mais severidade.
Os juízes devem aplicar a lei
rigorosamente, sob a pena de cometer abuso de autoridade. Não há outra escolha
diferente da aplicação da lei em vigor. É um ato imoral, mas punido de forma
branda. Seria desproporcional. A população deve voltar os olhos para o
legislador. É um caso interessante diante da legislação, porque a conduta é
grave devido ao incômodo que causa à vítima, mas a resposta legislativa não é
proporcional.”
A população deve voltar os
olhos para o legislador. É um caso interessante diante da legislação, porque a
conduta é grave devido ao incômodo que causa à vítima, mas a resposta
legislativa não é proporcional.
Silvia Pimentel, professora da
PUC-SP e integrante do Comitê sobre a Eliminação da Discriminação contra a
Mulher da ONU
“Os colegas têm grande
dificuldade de perceber que estão equivocados quando não conseguem enxergar a
violência desse ato. É uma violência moral, psicológica e inaceitável. Entendo
que é um conceito ultrapassado se ficarmos só na violência física, de agarrar
uma pessoa ou de usar a força física. As interpretações que consideram essa
ação como uma contravenção estão equivocadas. Não estão levando em consideração
a perspectiva da mulher, sobre o que significa uma ejaculação de um
desconhecido no seu corpo.
Participei de um encontro de
mulheres pela manhã e disse que, mesmo sem a violência física, havia a
violência moral, simbólica e psicológica no ato. Uma pessoa que estava na
plateia se levantou e discordou, questionando como não seria uma violência
física o fato de ter em seu pescoço o esperma masculino, sem ter consentido.
Não sou uma penalista, mas, no meu entendimento, existiu uma banalização desse
ato [com a decisão do juiz].”
As interpretações que
consideram essa ação como uma contravenção estão equivocadas. Não estão levando
em consideração a perspectiva da mulher, sobre o que significa uma ejaculação
de um desconhecido no seu corpo.
Sylvia Urquiza, advogada
criminalista e sócia do Urquiza, Pimentel e Fonti Advogados
“O caso da ejaculação não teve
grave ameaça ou violência expressa, portanto, não se enquadraria como estupro,
mas seria uma violência sexual mediante fraude, com pena de dois a seis anos de
prisão. É uma dificuldade lidar com as autoridades e fazê-las entender que o
bem jurídico tutelado é a liberdade e a vontade da vítima. Os atos libidinosos
só podem ser praticados por livre e expressa manifestação da vontade. Não há
livre vontade quando pessoas se aproveitam do elemento surpresa ou de um
aglomerado de pessoas.
A semântica atrapalha porque
faz com que a sociedade não consiga distinguir as coisas. É grave não termos
uma legislação que especifica esse tipo de prática porque abre margem para as
autoridades imaginarem que não há crime quando não há ameaça ou violência. Por
isso, a revolta deve ser dirigida às autoridades de um modo geral. Elas não têm
a desculpa de não conhecer a legislação. Apesar de ensejar diferentes
interpretações e por mais ampla e aberta que seja a tipologia, o Código Penal
condena a violência sexual e protege a liberdade sexual dos indivíduos.”
Os atos libidinosos só podem
ser praticados por livre e expressa manifestação da vontade. Não há livre
vontade quando pessoas se aproveitam do elemento surpresa ou de um aglomerado
de pessoas.
(Fonte : VEJA)
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